domingo, 21 de dezembro de 2008

Conto de Natal

ESTIVA

Aproxima-se mais um navio do porto. Parece ser um dos grandes, vai ter trabalho até o Natal, diz Antônio.
Nesta época, os biscateiros aguardam a chegada de navios, na entrada do porto, com a esperança de conseguirem trabalho até o dia de Natal. Todo ano a história se repete. Hoje, apenas os 40 primeiros da fila foram recrutados, os outros irão disputar novamente um lugar no ano que vem.
Já às quatro da manhã o Del’Rei aporta para o descanso de dois meses, antes de retornar a sua viagem até a costa portuguesa. −Todos a postos, gritam em meio à confusão causada pela chegada do navio. Esse veio pesado, diz Irineu, −que bom! vai ter trabalho para esticar até o dia 24, responde Antônio.

−Vamos, prendam as correntes, amarrem as cordas, ordena o encarregado de face carrancuda e voz grosseira.

Um barulho ensurdecedor cria um ambiente particular, como se mundo não houvesse fora daquele porto. Tinha-se que ficar bem atento às ordens do encarregado, não se podia falhar, ainda havia outros no portão à espera de uma desistência ou dispensa de algum agraciado. A cor alaranjada do alvorecer invade a proteção cinza e marrom do lugar. Aqueles homens, de corações expectantes, fitavam a nau como argonautas temerosos às peripécias divinas. Em seus íntimos, a neblina densa de receio, tomara o lugar da coragem que os levaram em busca de trabalho.

Antônio era um negro descendente de família forra, morava no bairro alto do Livramento, numa rua de calçamento pé-de-moleque, em casa isolada devota à Imaculada Conceição por fora; no interior a devoção era à mãe Oxum. Formou família ainda jovem, mulher e cinco filhos. Sua esposa cuidava da cozinha de uma das famílias ilustres da sociedade carioca. A cozinheira prendada e responsável chegava cedo ao seu reino de panelas e temperos. Seus patrões a tinham em alta estima; apesar da cor e de sua posição social, costumavam interpelá-la sobre sua casa, seus filhos e sobre Antônio. Muitas vezes, com a ajuda deles, ela garantira a única refeição que sua família faria no dia.

Enquanto Antônio tentava alcançar a ceia de natal da humilde, porém, feliz família, na casa era verdadeiro alvoroço: as crianças estavam ansiosas com a proximidade do Natal, e claro, com o retorno do pai. Elas sabiam que junto com o pai também viria a melhor refeição do ano. Os pequeninos sonhavam com a mesa farta de guloseimas −mesmo sabendo que os pratos servidos não passariam dos de sempre, acompanhados da iguaria comprada especialmente para aquela noite.

Irineu, amanhã é dia 24, já consegui o suficiente para este Natal, diz Antônio. Não vai sobrar nada para comemorarmos esse bichão-navegante que nos livrou da fome, indaga Irineu. Bem... Acho que dá pra tomar uma antes de eu subir o morro, mas não posso me demorar, a patroa vai chegar cedo da casa dos grã-finos e espera o pernil que vou levar, condiciona Antônio.

O alvorecer do dia foi intensamente esperado, os marujos, os estivadores aguardavam o tão ansiado apito. Às cinco horas em ponto, os portões se abrem, e os escolhidos dentre muitos daquele ano já podem retornar às suas casas.

-Antônio! Vamos lá pro Boteco São Jorge comemorar, grita Irineu.
-Eu vou, mas já avisei que não posso demorar, salienta Antônio.

Após doses e doses de água-ardente, Antônio apanha seu pernil dourado de tão assado, que comprara ali perto, numa padaria e toma seu caminho rumo ao morro do Livramento. Deixando a rua Imperatriz, já nas calçadas da rua da Direita...

-Ei, psiu, aonde vai com tanta pressa?
-Não me amole, diz Antônio.
-Espera; não quer um se divertir um pouco? Hoje é Natal, dia de realizar desejos.
-Tenho que ir, me deixa! Que isso, dona? Mas...é tão cheirosa...
-Então, aproveita, diz a mulher.

Antônio, com mãos calejadas apalpa aquelas carnes duras e viçosas, bêbado não vê o estender da hora e já noite desperta num beco escuro. Pensa, apenas, em seguir seu caminho.
−Antônio, onde você estava? Estou te esperando desde do fim da tarde. As crianças já dormiram, a essa hora devem estar sonhando com a ceia que não tiveram, o repreende sua esposa.
-Eu bebi um pouco mais, foi só isso, diz ele.
-Cadê o pernil?
-Pernil? Eu...
-Tudo bem, meu querido, sei que fez o possível por este Natal.

Pela janela, Antônio ouvia risos e felicitações sem a certeza de onde vinham, não sabia ao certo se eram verdadeiros ou fantásticos os ruídos que invadiam seu íntimo. Debruçado, de cabeça escondida, sentia um aperto em seu coração pelo vazio que insistia em permanecer no centro da mesa. Fitando uma estrela imponente, prometera a si que no próximo ano ele seria o primeiro a chegar ao porto.
Feliz Natal e um 2009 como quiseres!!!!!

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