domingo, 28 de junho de 2009

Resenha – O Reino do Outro Mundo

Ontem, assisti a um espetáculo belíssimo pela sua proposta e assim continuaria para mim se não trouxesse outras questões além da beleza da arte e da cultura. Trata-se de O Reino do Outro Mundo, um espetáculo contemporâneo de dança dos Orixás, da cia Rubens Barbot.


O espetáculo se propõe a uma leitura contemporânea das danças dos Orixás, optando-se por trabalhar com as várias vertentes para manter a idéia de retratar o lado mais popular. Elegeram então para o Orixá Exu a leitura mais popular na cultura brasileira. Este ponto eclodiu em questionamentos.


Quem é Exu na cultura brasileira? Preciso dizer? Basta lembrarmos das imagens à porta de lojas de artigos religiosos, das frases escritas em muros por toda a cidade do Rio de Janeiro, do que ouvimos em programas de rádio de algumas religiões cristãs. Enfim, é o mal personificado na figura do diabo.


Preocupa-me esta eleição pelo popular. De qual popular falamos? Com um pouco de história e conhecimento sobre a cultura africana saberemos quem é Exu, por isso minha preocupação com a escolha, a opção. A arte muitas das vezes assume o papel social e de formação de conceitos. Corremos o risco de perpetuar o estigma que discrimina uma parcela deste “popular”.


Èsù é uma divindade única que possui vários cognomes de acordo com os atributos referentes às suas atividades: Òjíse, o mensageiro; Elébo, o transportador de oferendas; Olóna (n), o dono dos caminhos; Akésan, o que supervisiona as atividades dos mercados do rei; Òdàrà, identificado com as coisas do bem; Elégbára, o conhecedor do poder e etc. (Beniste, 2006).


Este orixá por ser o fiscalizador universal, não pode ser aliado permanente de ninguém, deve ser livre em suas relações, por isso sincretizado com o diabo, figura a qual no cristianismo é o desobediente. Ocultaram sua essência: princípio da vida, a força que move os corpos, a dinâmica, o senhor dos caminhos e das encruzilhadas, a principal ponte entre os mortais e as divindades que habitam o além.


Aquela noite poderia ser um momento ímpar de rompimento com os conceitos impostos. Um lugar de eco da voz da história, da cultura, um resgate daquilo que nos foi negado. Ainda assim, fica a sugestão , vale pela beleza e pela intenção.


Serviço:

Estréia: 11 de junho às 20h.
Temporada: de quinta a domingo,
sempre às 20h, até 09 de agosto.

Local: Casa Alto Lapa Santa
Rua Joaquim Murtinho, 654
Santa Teresa. Tel: 2220- 5458.

Capacidade: 70 lugares

Ingresso:
R$ 20,00 (inteira)
R$ 10,00 (meia-entrada)
R$ 5,00 (promocional - válido para pré-vestibulares , escolas, ONGs, rádios comunitárias e associações comunitárias)

segunda-feira, 8 de junho de 2009

Quando mudei de canal...

Ontem, domingo, frio gostoso, propício pra ficarmos enroladinhos numa colchinha acalentadora, não resisti a esta atmosfera de hibernação. Fiquei por algumas horas no sofá assistindo a programas ligeiramente interessantes. Muitos sabem o quanto sou avessa a esta intrusa, por isso não possuo TV fechada. Sendo assim, pouco tempo me rouba esta manipuladora. No entanto, gosto dos programas alternativos, sobretudo, os da TV Brasil.

A preguiça era muita, confesso. Depois de trabalhar por longo período nas tarefas da pós-graduação, grudei o glúteo no “chesterfield” cinza. Quando percebi a noite estava alta e os programas escassos. Fui dar uma olhadinha em um canal famoso, quando fiquei estarrecida com o que assisti. Era o comercial da Mastercard, aquele que afirma que alguns consumos não têm preço. Um desses consumos era a aprovação no vestibular representado por uma luta, no ringue, entre um branco franzino e um negro musculoso. À frente do menino branco pilhas de livros, ao negro sobrou a força física, ou para quem sabem ler, a violência.

Eis a materialização do signo da discriminação simbólica cuja força é extrema em nossa sociedade. Na platéia, estavam os pais do pequenino torcendo pelo seu desempenho, que segundo a propaganda, obteve sucesso por méritos próprios. Os pais do negro? Não, negros na maioria possuem apenas mãe, lembra?

Os publicitários se esqueceram, acredito tratar-se de esquecimento, de apresentar a trajetória e a história dos personagens. A imagem tornou-se inverossímil quando apagaram a história que os conduziram até aquele ringue, quando silenciaram o lutador negro, coitado, que só o restou socos e pontapés para arrombar as portas da casa grande.

Compartilho a brilhante análise de Rebeca Duarte, especialista em política de cotas e membro do Observatório Negro:

Por Rebeca Oliveira Duarte*

Sempre gostei de observar os comerciais brasileiros; nada pelos produtos em si, mais pela perspectiva artística que a propaganda brasileira costumava ter. Em certos períodos, tive muitos contragostos, especialmente à época em que as cervejarias desbundaram em propagandas sexistas, mal-feitas e repetitivas, até que, felizmente, a justiça decidiu – por pressão das feministas – pôr os limites necessários à liberdade de expressão. Afinal, democracia não justifica agressão e discriminação contra mulheres; pelo contrário, requer a garantia de serem tutelados os direitos fundamentais de todos os segmentos sociais.

Bem, mas o que eu quero dizer é sobre a perspectiva artística das propagandas, e a respeito de como algumas delas marcam os telespectadores. Em Pernambuco, quem tenha mais de trinta anos não tem como não lembrar com um sorriso os jingles das Casas José Araújo, nos idos dos 1980, ou a cantiga doce de uma marca de açúcar cristal.
Mais recentemente, em nível nacional, uma dessas campanhas bem sucedidas é a da Mastercard, que associa o consumo às coisas não-consumíveis, seduzindo quem assiste geralmente pela afetividade. Pois bem. A última das versões da campanha “Não tem preço” espantou-me com um exemplar bem “sutil” do racismo brasileiro, daqueles que poucas pessoas “conseguem” perceber. Ou querem perceber.

Trata-se de um jovem franzino branco lutando no ringue com um homem negro grande e forte. Do lado do negro, a altura e os músculos; do lado do branco, a sua força está num computador, em livros e, o que quer nos levar a pensar a propaganda, pela aplicação intelectual do jovem branco. Ao final da luta, o negro desaba enquanto o jovem ergue os braços e o narrador finaliza: “passar no vestibular: não tem preço”.

Muito interessante como a propaganda descreve exatamente o pensamento comum referente ao “lugar” do negro na perspectiva racista brasileira, principalmente em relação à educação. Se de um lado o negro aparece superior fisicamente, com sua “força bruta”, muscular, o branco o supera pelo “mérito” individual da intelectualidade e, por isso mesmo, derruba o primeiro para ocupar um lugar de privilégio – a universidade. Assim é a idéia geral que povoa o imaginário brasileiro, principalmente em relação às cotas.

A propaganda da Mastercard parece ter sido escrita por aqueles intelectuais de gabinete que criticam as cotas como uma ameaça à meritocracia individual, elitista e racista; quem sabe, foi mesmo. Não duvidaria. Afinal, a igualdade racial é um preço muito caro que alguns segmentos da sociedade não querem pagar, para não terem de ver o negro e a negra se defenderem dos golpes que historicamente receberam. O medo, tão grande, desse “jovem branco franzino”, é da reação; de ver-se contra-atacado, golpeado e jogado ao chão, humilhado, assim como fez ao outro.

Mas erra quem vai nesse caminho. Em nenhum momento, a defesa das cotas quer colocar as coisas como uma luta de boxe, no qual o “vencedor” deixa o outro derrubado na lona, vencido. Pelo contrário. Queremos sim que o vestibular saia do ringue e que a universidade seja um campo democrático, sem disputa ou concorrência – tão-somente de conhecimento. E, necessariamente, da socialização deste conhecimento.

Queremos que a educação não tenha preço, nem pagantes, nem excluídos. Sem os nocautes da injustiça social e do racismo, que fazem a pessoa negra pagar sempre muito caro por sua existência. O racismo causa, inclusive, um estrago que não tem valor que compense. Só a consciência social – e essa sim, não tem preço, apesar de ser ainda tão cara em nossa sociedade.

*Rebeca Oliveira Duarte
Observatório Negro
Rua do Sossego, 253 – sala 02 – Boa Vista
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