terça-feira, 7 de outubro de 2008

Cronicando

1º DE JANEIRO DE 2005

FernandaSantos


Neste Ano Novo, quero tudo novo. E, nada melhor que a água para iniciar esta renovação.

Foi assim que senti minha vida transmutada: o meu 2005 seria límpido, incolor e inodoro, pronto para ser solução diluente. Até meu rejuvenescimento estivera garantido; encontrava-me diante da fonte da juventude que brotou em minha sala no primeiro dia deste ano.

De repente, me vi imerso - não no mar saldando Iemanjá e muito menos Netuno - mas no alagamento do meu apartamento. Acordo e encontro minha sala de estar alagada. Fazer o quê? Secar a água é o óbvio.

Durante o tempo em que esticava o pano de chão e o torcia no balde, vi a retrospectiva do meu 2004 passar feito programa de TV apresentado em fim de ano. Refletido ali, naquele espelho límpido, mas tão molhado. Percebi que a nossa vida corre rápida, como água que escoa. Que ela por mais que se empoce, um dia encontrará um caminho para seguir seu rumo. Nesse encontro, onde ela é impotente para escolha, cabe conformar-se com o que a superfície lhe oferece. Se há alguma tortuosidade, ela pára, espera, se acumula e transborda em busca da liberdade. Se a trilha é plana e, ainda, quedada, à vontade ela cumpre seu destino de seguir, ir longe até aonde seu fluxo permitir.

Aqui, agachado, cerco-a por todos os lados. Não quero que ela ultrapasse. Enquanto a reservo num balde para ser despejada no ralo. Noto quantas coisas boas não cerquei, não torci até a última gota. Quantas pessoas deixei de acumular no balde do meu convívio, no balde de meu gostar e quantos momentos joguei pelo ralo. O quanto o medo foi maior que a força da água. Transformei-me, aos poucos, em um ser indefinido, sem forma, sem contorno, sem preenchimento.

Viver, tornou-se complicado e perturbador. O mundo em que eu me isolei era composto por formas frias e insosas. O céu sobre minha cabeça não era azul, pelo contrário, apresentava-se constantemente cinza. Dentro deste mundo percebi o que é a força do desejar. Morri para vida quando renunciei ao desejo. O que me impulsionava à criação, ao amar, ao viver deixou-me só com a lembrança do que foi felicidade para mim.

Dor... que dor é essa que me consome, rasga o peito com o punhal fino da apatia. Não, não culpo ninguém, a escolha foi minha. Não cabe a ninguém me dar os melhores momentos da minha vida, mas somente a mim criá-los.

Acho que a minha última prece do ano foi ouvida. Os deuses, os orixás, os guias ouviram meu clamor por renovação. E, começaram, justamente, pela minha sala.



Crônica publica na antologia Onze cores da uva, organizada por Christina Ramalho, editora OPUS, 2006

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